Por Jordana Herzog.
Janeiro, 2024.
Jael e Sísera, por Artemisia Gentileschi (1620).
Bendita seja entre as mulheres, Jael, mulher de Héber, o queneu; bendita seja entre as mulheres nas tendas. Água pediu ele, leite lhe deu ela; em prato de nobres lhe ofereceu manteiga. À estaca estendeu a sua mão esquerda, e ao martelo dos trabalhadores a sua direita; e matou a Sísera, e rachou-lhe a cabeça, quando lhe pregou e atravessou as fontes. Entre os seus pés se encurvou, caiu, ficou estirado; entre os seus pés se encurvou, caiu; onde se encurvou, ali ficou abatido.
(Juízes 5: 24-26)
Numa manhã de domingo, meu dia favorito da semana, acordei meio sem ar. Estava ansiosa para passar o dia descansando relaxada depois de mais uma semana puxada de trabalho, mas os dias que sucederam o sonho e tudo que têm acontecido me colocaram em um female rage escrevendo isso. Permitam-me me adiantar e dizer que isso não é sobre um sonho.
Eu sonhei que meu namorado me abandonava. Ele terminava comigo do nada. Eu estava desesperada e queria entender, então eu perguntava a ele “Por quê? Estamos juntos há anos, falamos de casamento e filhos, por quê? Você conheceu outra pessoa, não é?” E ele dizia que estava conversando com duas outras mulheres. Depois, minha mãe aparecia e me dizia coisas como: “você deveria saber melhor. Nunca estamos seguras, nunca confie. Agora você não tem nada.”
Felizmente, na vida real, minha mãe nunca me colocaria para baixo assim e, por ter sido criada por uma mulher forte, eu também não me desesperaria se fosse abandonada. Minha mãe, assim como quase todas as mulheres que habitam esse planeta, incluindo eu, foi uma mulher traída por um homem. O que me incomoda nesse sonho, que me é recorrente, é ser tratada como algo descartável, cujo passado amoroso da relação parece ser irrelevante ao meu parceiro.
Algumas semanas atrás, eu maratonei a nova temporada de Queer Eye, que tem 2 episódios especialmente fortes e emocionantes com mulheres negras que foram traídas e abandonadas, não só elas, mas também os filhos. Essas mulheres haviam se esgotado física e emocionalmente cuidando da casa e do marido, e foram deixadas sozinhas por homens que eram amados e cuidados por elas se perguntando o motivo.
Uma amiga me mandou um vídeo viral do TikTok de uma moça que fez uma música em tom engraçadinho do seu término. Ela estava em um relacionamento feliz há 3 anos e meio em Los Angeles. Seu namorado disse que queria voltar para o Texas para ficar perto do pai dele. Então ela esvaziou a poupança dela, deixou de lado seus hobbies, trabalho e amigos pela pessoa que ela amava, e essa pessoa sentou no sofá recém-comprado deles na casa nova e entregou um papel patético terminando a relação, alegando que eles eram incompatíveis. Ela ainda faz vídeos comentando seu processo de luto em tom irônico, e os comentários se dividem entre apoio e gente dizendo que já faz meses e que ela deveria superar. Mas a maioria dos comentários foi do tipo “os sinais já deveriam estar ali e ela não viu”, ou “ele não queria que ela se mudasse junto, ela não entendeu e foi porque quis”. Mesmo diante do inexplicável, é quase sempre nossa culpa.
Depois do sonho, peguei meu celular pra me distrair olhando o Instagram e vi que o namorado de uma amiga que morou comigo por um tempo (e cheguei a hospedá-los enquanto casal também), havia curtido uma foto minha de biquíni de anos atrás. Ele teve que clicar para carregar o feed 9 vezes para essa foto aparecer. Na noite anterior, eu tinha curtido um story que ele postou com duas taças de vinho e uma TV ao fundo, o que presumi que era um momento a dois deles, e sorri vendo.
Compartilhei como eu estava me sentindo em um grupo de amigos, começamos a conversar sobre o assunto e as outras três mulheres do grupo disseram que têm sonhos parecidos com alguma frequência e que sentem o mesmo medo de abandono. Mas não como algo real, porque no real nós somos mulheres fortes e independentes, mas da ordem do simbólico, como se o abandono fosse um fantasma que nos assombra volta e meia, sabe? Um amigo homem do grupo disse que sua mãe foi abandonada pelo marido enquanto estava no hospital, careca, se recuperando de um atropelamento. Ele era criança, e só hoje entende o que aconteceu.
Uma pesquisa indicou que mulheres têm 6 vezes mais chances de serem abandonadas quando estão doentes do que homens. No seu livro Prisioneiras, o médico Drauzio Varella apontou a discrepância no número de visitas de mulheres a homens na cadeia, e de homens que visitam mulheres encarceradas.
“A diferença maior, se você tiver que escolher uma, é o abandono. O homem que vai preso tem sempre uma mulher que vai visitá-lo: namorada, amante, esposa, tia, prima, avó, mãe. A mulher que vai presa é abandonada completamente. Pra você ter uma ideia, na penitenciária feminina tem 2.200, 2.500 presas. O número médio de visitantes por semana é 800. Visitas íntimas não passam de 200 mulheres. Você vai numa cadeia masculina e o número é muito superior a esse.”
O peso social de uma mulher ser abandonada por um homem é infinitamente maior do que o contrário. Nós somos bombardeadas a vida inteira com histórias de mulheres abandonadas e traídas, sejam personalidades midiáticas, sejam familiares e amigas, desde as que foram deixadas enquanto estavam em um hospital entre a vida e a morte até a mais bonita e famosa das mulheres. O contrário não acontece. Enquanto nunca estamos seguras, fomos ensinadas a cuidar, amar e dar segurança como se não tivéssemos valor por si só. Crescemos aprendendo a dar, dar e dar de nós, enquanto homens crescem recebendo e se sentindo merecedores. Eles não temem o abandono e desconhecem as consequências sociais dele.
E o que acontece quando homens ficam? Quantas histórias não conhecemos também de infidelidade, até de violência? Há homens que vão fazer literalmente tudo antes de escolher ter uma conversa “difícil” para terminar uma relação na qual não querem mais estar.
Essa semana viralizou o caso de Vanessa Barbara, que contou a história de um adultério no podcast Rádio Novelo Apresenta, adultério que envolveu o conhecido grupo de homens que objetificam mulheres juntos. O caso é bem comum: uma traição revelada acompanhada de um homem negando, mentindo e por fim com raiva de ter sido descoberto.
“Mas nada grave ocorreu”. Não deveríamos esperar por isso, o que estamos combatendo é justamente a cultura em que homens se sentem no direito de etiquetar mulheres como objetos. É a (falta de) educação que homens recebem do berço, é a maneira como a violência é transmitida a meninos, homens, que precisamos olhar com cuidado, como diz Rebecca Solnit.
Passando para um caso aterrorizante (e fica aqui o alerta de gatilho de violência sexual), Gisèle Pelicot foi drogada e estuprada pelo seu marido e por homens que ele recrutou online ao longo de 10 anos. Eles têm uma filha juntos, que também foi vítima, e agora espera que o pai morra na prisão. Ele foi pego em flagrante tentando filmar mulheres em um supermercado, e só veio à tona o caso de Gisèle após encontrarem evidências no seu computador (sim, ele ainda registrava tudo). O criminoso a drogava com analgésicos que todo mundo costuma ter em casa. Ele não era um monstro, nem um doente. Era um marido e pai.
A filha, Caroline Darian, agora se dedica como ativista a trazer clareza a mais um subfenômeno da cultura do estupro, a submissão química, e escreveu um livro sobre seu trauma familiar. Gisèle estampa capas de jornais no mundo inteiro como um ícone feminista. Ela disse algo extremamente importante: “A vergonha não é nossa para sentir. É deles”.
Meu estômago revira com o caso e eu me pergunto: a que custo somos fortes? A que custo nos tornamos inspiradoras, nos tornamos uma história de superação? Até quando vamos ver tantas dessas histórias contadas, por nós e por outras, quando na verdade elas não deveriam nem ter acontecido em primeiro lugar? Não temos o direito de ser um exemplo sem sermos violentadas?
Eles têm.
Hoje, senti vontade de chorar e de escrever, porque todas essas histórias me pesam, me doem e não me saem da cabeça, como o vídeo viral que começa com “Imagine you live in L.A. with your boyfriend and everything’s going amazing”. Assim como Jillian Lavin, me arrisco a escrever um pouco para buscar alguma sanidade nessa dor que é tão e somente nossa.
Viver é lutar, e nem sempre a luta faz sentido. Li essa frase em um livro escrito por um homem sobre abandonar a esposa e os filhos na calada da noite, tentando se convencer de que isso não é a pior coisa que se pode fazer a alguém. E contar nossas histórias pode parecer sem sentido, como um sonho, algo que aconteceu 14 anos atrás ou uma versão musical e sarcástica de um término, mas é parte da nossa luta como mulheres nessa longa guerra do feminismo.